quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Venha Ver o Pôr do Sol - Lygia Fagundes Telles

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
- Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima. Ele riu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?
- Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - hein?!
- Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço - Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar, não? -abrandara a voz. - E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo - acrescentou apontando as crianças na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.
 Ricardo e suas idéias. E agora? Qual o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está, enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr-do-sol mais lindo do mundo. Ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr-do-sol!... Ah, meu deus... Fabuloso, fabuloso!... Implora-me um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! e para quê? Para ver o pôr-do-sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
- Raquel, minha querida, não faça assim comigo. você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... - disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram-se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento.
- Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
- Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja completamente abandonado - prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. - jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo...
O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos, medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, que deprimente - exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou-lhe dando um crepúsculo numa bandeja, e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre. Delicadamente ele beijou-lhe a mão.  
- Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo. 
- É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.  
- Ele é tão rico assim?  
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o oriente. Já ouviu falar no oriente? Vamos até o oriente, meu caro...  
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.  
- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?  
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.  
- Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Quando penso, não entendo como aguentei tanto, imagine, um ano!  
- É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?  
- nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. - pois sim. Durou pouco essa eternidade.  
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.  
- Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja - disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão às raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.  
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.  
- Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. - deu-lhe um rápido beijo na face. - Chega, Ricardo, quero ir embora.  
- Mais alguns passos...  
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! - olhou para trás. - Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.  
- A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio - lamentou ele, impelindo-a para frente - dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr-do-sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.  
- Sua prima também?  
- Também. Morreu quando completou quinze anos. não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.  
-Vocês se amaram?  
-Ela me amou. Foi a única criatura que... Fez um gesto. - enfim, não tem importância. Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois o devolveu.  
- Eu gostei de você, Ricardo. 
 - E eu te amei.. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?  
Um pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.  
- Esfriou, não? Vamos embora.  
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.  
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.  
Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha. - Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?  
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico.  
- Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta. Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.  
- E lá embaixo?  
- Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó - murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la.  
- A cômoda de pedra. Não é grandiosa?  
Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor.  
- Todas essas gavetas estão cheias?  
- Cheias?... Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe - prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado embutido no centro da gaveta.  
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.  
- Vamos, Ricardo, vamos.  
- Você está com medo.  
- Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!  
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado.  
- a priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... -Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.  
- Não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus. Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada. 
- Que frio faz aqui. E que escuro, não estou enxergando!  
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.  
- Pegue, dá para ver muito bem... - afastou-se para o lado. Repare nos olhos.  
-Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... - antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. - Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida... - deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. - mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...  
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso. 
 - Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais cretina! - exclamou ela, subindo rapidamente a escada. - não tem graça nenhuma, ouviu? Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás. Ricardo abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! - ordenou, torcendo o trinco. - detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!  
- uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta tem uma frincha na porta. Depois vai se afastando devagarzinho, bem devagarzinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo.  
Ela sacudia a portinhola.  
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! - sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - ouça meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...  
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque. 
- Boa noite, Raquel. 
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo. - cretino! Dá-me a chave desta porcaria, vamos! - exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.  
-não, não...  
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando, as duas folhas escancaradas.  
- boa noite, meu anjo. Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se, entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.  
- não... 
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:  
-Não!  
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de, um animal sendo, estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.  
Glossário: 

Espasmo Estado que revela espanto, estupefação
Baldios – Sem proveito, agreste, inculto, terreno desaproveitado.
DébilSem disposição ou ânimo, sem firmeza de vontade; que não se impõe
Inexperiente – Aquele ou aquela que ainda não tem experiência de vida, que ainda não aprendeu ou não teve de lidar com a malícia e a maldade alheias
Entrechocando – chocarem-se vindo um ao encontro do outro, contrair-se, estar em contradição.
Medonho – Que causa medo, repulsa.
Astuta – sutilmente, ardilosamente.
Cretina – estado, caráter do cretino, imbecil.
Embrutecida – tornar-se bruta ou estúpida, brutalizar-se
Mortiço – Que é desprovido de brilho, de vivacidade


Mini-Biografia de Lygia de Azevedo Fagundes



Texto em equipe

O conto de Lygia Fagundes Telles “Venha ver o pôr do sol” aborda um tema atemporal, isto é, por mais que os anos passem sempre estará presente no dia-a-dia das pessoas, a vingança.
O conto gira em torno de um ex-casal, Ricardo e Raquel, no qual a moça deixa o rapaz por um homem mais velho e rico. Ricardo nunca aceitou esse término de relacionamento, então resolveu convidar Rachel para um último encontro, num cemitério abandonado para ver o pôr do sol. Depois de caminharem por um tempo, Ricardo conta a história de sua prima, Maria Emilia, que era uma jovem que o amou, mas que falecera aos 15 anos. E nesse momento finalmente chegam à capelinha do túmulo dos parentes de Ricardo. E foi nessa capelinha que Ricardo prende Rachel, com um “Boa Noite, meu anjo” de despedida. E, assim, ele segue para a saída do cemitério, sem olhar para trás.
É fácil ver o quão comum esses tipos de acontecimentos se tornaram no cotidiano das pessoas. Hoje, não se surpreende quando aparece em algum noticiário ou no rádio que uma garota foi sequestrada ou morta por um ex-marido ou ex-namorado.
As pessoas não pensam que para toda ação há uma reação; tudo que ela fizer vai causar alguma reação. E apenas quando acontece consigo própria ou com alguém próximo que as pessoas param para pensar nisso.
Sentimentos como a vingança, ambição, amor não correspondido, tristeza, raiva ou ódio são apenas alguns das causas que podem levar uma pessoa a cometer um crime e, muitas vezes, essa pessoa não consegue ver que está errada e ela continua a fazer, cada vez mais e cada vez pior, até que não há mais nada que a pare. 

 Nomes: Aline Martins, Amanda Siqueira, Brena, Brenda, Clara Plentz, Laryssa Gomes, Vitória Luíza
N°: 02 ; 04 ; 06 ; 07 ; 09 ; 18 ; 31

Colégio: Professor Juvenal da Costa e Silva

9° ano D


terça-feira, 5 de novembro de 2013

Penélope (Dalton Trevisan)

      Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido      na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado.
      Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco, fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba.
      Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece, incapaz de mata-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.
      Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.
      Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura.   Estende o papel à mulher que, depois de ler, olha-o. Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.
   — Que vai fazer?
   — Queimar.
      Não, ele acode.  Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal. 
      A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas.
    —   Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas.
     O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esquece o papel no bolso, outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.
     Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:
   — Não vai ler?
      Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, azuis como no primeiro dia.
   — Já sei o que diz.
   — Por que não queima?
       É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a, duas palavras recortadas. Sopra o envelope, sacode-o sobre o tapete, mais nada. Coleciona-a com a outra e, ao dobrar o jornal, a amiga desmancha um ponto errado na toalhinha.
      Acorda no meio da noite, salta da cama, vai olhar à janela. Afasta a cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora.
      Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta?  Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar. Range a porta, lá está: azul. No bolso com as outras, abre o jornal. Voltando as folhas, surpreende o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recorda a legenda de Penélope, que desfaz a noite, à luz do archote, as linhas acabadas no dia e assim ganha tempo de seus pretendentes. Cala-se no meio da história: ao marido ausente enganou Penélope? Para quem trançava a mortalha? Continuou a lida nas agulhas após o regresso de Ulisses?
      No banheiro fecha a porta, rompe o envelope. Duas palavras... Imagina um plano? Guarda a carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendura o paletó no cabide, o papel visível no bolso. A mulher deixa na soleira a garrafa de leite, ele vai-se deitar. Pela manhã examina o envelope: parece intacto, no mesmo lugar. Esquadrinha-o em busca do cabelo branco — não achou.
      Desde a rua vigia os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontra-lo no portão — no olho o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo da nuca, se não tem sinais de dente... Na ausência dela, abre o guarda-roupa enterra a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espiona os tipos que cruzam a calçada. Conhece o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos.
     Reconstitui os gestos da amiga: pós nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou seca... Pela toalhinha marca o tempo. Sabe quantas linhas a mulher tricoteia e quando, errando o ponto, deve desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha.
     Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lê, observa o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés, espreita à janela: a cortina machucada pela mão raivosa.
     Afinal compra um revólver.
 — Oh, meu Deus... Para quê? — espanta-se a companheira.
     Ele refere o número de ladrões na cidade. Exige conta de antigos presentes. Não fará toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto no joelho, vigia a mulher — o rosto, o vestido — atrás da marca do outro: ela erra o ponto, tem de desmanchar a linha.
     Aguarda-o na varanda. Se não a conhecesse, ele passa diante da casa. Na volta, sente os cheiros no ar, corre o dedo sobre os móveis, apalpa a terra das violetas — sabe onde está a mulher.
     De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a desfazer na noite o trabalho de mais um dia?
      Erguendo os olhos, a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem fio. Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono profundo.
      Havia um primo no passado... Jura em vão, a amiga: o primo aos onze anos morto de tifo. No serão ele retira as cartas do bolso — são muitas, uma de cada sábado — e lê, entre dentes, uma por uma.
      Por que não em casa no sábado, atrás da cortina, dar de cara com o maldito? Não, sente falta do bilhete. A correspondência entre o primo e ele, o corno manso; um jogo, onde no fim o vencedor. Um dia tudo o outro revelará, forçoso não interrompê-la.
      No portão dá o braço à companheira, não se falam durante o passeio, sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanha o envelope e, antes de abri-lo, anda com ele pela casa. Em seguida esconde um cabelo na dobra, deixa-o na mesa.
      Acha sempre o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou — ele se pergunta, com nova ruga na testa — descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia?
      Uma tarde abre a porta e aspira o ar. Desliza o dedo sobre os móveis: pó. Tateia a terra dos vasos: seca.
      Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido brando ensangüentado. Deixa-a de olho aberto.
      Piedade não sente, foi justo. A polícia o manda em paz, longe de casa à hora do suicídio. Quando sai o enterro, comentam os vizinhos a sua dor profunda, não chora. Segurando a alça do caixão, ajuda a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de cobri-lo, vai-se embora.
      Entra na sala, vê a toalhinha na mesa — a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia — o marido em casa.
      Acende o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. É sábado, sim. Pessoa alguma lhe pode fazer mal. A mulher pagou pelo crime. Ou — de repente o alarido no peito — acaso inocente? A carta jogada sob outras portas... Por engano na sua.
      Um meio de saber, envelhecerá tranqüilo. A ele destinadas, não virão, com a mulher morta, nunca mais. Aquela foi a última — o outro havia tremido ao encontrar porta e janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão.   Acompanhado, ninguém sabe, o enterro. Um dos que o acotovelaram ao ser descido o caixão — uma pocinha d’água no fundo da cova.
      Sai de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos.  Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorri desdenhoso da sua vaidade, ainda morta...
     Os dois degraus da varanda — “Fui justo”, repete, “fui justo” —, com mão firme gira a chave.  Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.


Glossário:
Vagamente: (vago + -mente)
1. Não ocupado (ex.: lugares vagos). = VACANTE
2. Que não tem quem o ocupe ou desempenhe (ex.: cargo vago). = DISPONÍVEL, VACANTE
Crispar
1. Encrespar, franzir.
2. Contrair.

Regresso 

1. .Ato de regressar. = RETORNO 2. Volta.3. Recurso contra alguém.

Intacto 1. Que não foi tocado.2. Que está qual se recebeu ou foi entregue.3. Inteiro.4. Não encetado.

Espreita

1. .Ato de espreitar.2. Pesquisa; espionagem; atalaia.3. [Antigo]  Cilada; ardil; embuste.

Tifo

 1. Nome de várias doenças contagiosas e .epidêmicas que atacam geralmente grande número de indivíduos ao mesmo tempo, nos sítios onde  demasiada aglomeração de gente.
 Forçoso
1. Indispensável, inevitável; absolutamente preciso.2. Violento, rijo, teso.3. Forte, robusto.

Brando

1. Que cede à pressão.2. Mole.3. Suave, fraco.4. Leve.5. Pouco enérgico.6. Afável, meigo.

Desdenhoso

 1.Cheio de desdém; sobranceiro; esquivo.

Mortalha 1.        Lençol ou túnica que envolve um cadáver.



Texto Síntese:
O conto fala da história de um casal de idosos que viviam sozinhos e isolados. Viviam uma vida bem reservada cheia de mistérios o que se fala no conto é que os filhos morreram num desastre e o casal se mudou para Curitiba.
            Todos os sábados saiam para passear, certo dia chegaram do passeio e encontraram uma carta na porta eles estranham pos ninguém escrevia pra eles. Não leram à carta, mas também não jogaram fora acharam que era um panfleto jogado em todas as casas.
            Na outra semana o senhor encontra outra carta jogada na porta e guarda junto com a outra.
            Já desconfiado ele começa a vigiar sua esposa achando que ela é infiel. Desconfiava de todos até de um primo da mulher que morreu há doze anos.
            Foi então que ele decidiu comprar um revolver ela fica surpresa com a atitude do marido, mas ele diz que é por causa de muitos ladrões.
            Em uma tarde a senhora esta deitada na cama morta com um revolver sob o corpo. Ele diz isso a policia afirmando que ela cometeu suicídio. Mas na verdade ele a matou por ciúmes.
            Mesmo depois da morte da senhora ele continua saindo aos sábados, mas agora sozinho as cartas continuam chegando, e ele c0ontinua achando que foi justo o que ele fez com a  esposa, e lê o jornal em vós alta para não ouvir o silencio.
          Neste conto podemos perceber que o senhor era um homem bravo frio e muito ciumento. E tinha uma grande desconfiança da mulher com quem era casado há muito tempo.
Infelizmente nos dias atuais vemos pessoas assim que por ciúmes cometem esses crimes como, por exemplo, no caso da jovem Eloa que foi mantida em cárcere privado por cinco dias no apartamento onde ela morava, pelo namorado que não aceitava o fim do relacionamento no fim de tudo Eloa acabou morta com um tiro na cabeça e outro na virilha.
As pessoas precisam aprender a ser menos egoístas, mais compreensivas, aprender a controlar o ciúme possessivo e aprender a respeitar os outros seja lá qual for suas decisões.


ilustração:

Nome: Letícia de Souza   N°17
Serie: 9°A
Escola : Emilio Simonetti
Professor: Maurilio
06/11/2013


As Formigas - Lygia_Fagundes_Telles.

Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.
- É sinistro.
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
- Pelo menos não vi sinal de barata – disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.
- É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na minha
direção.
- Estudo direito. Medicina é ela.
A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.
- Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos.
- O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
Minha prima voltou-se: – Um caixote de ossos?
A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de joelhos puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
- Mas que ossos tão miudinhos! São de criança? – Ele disse que eram de adulto. De um anão.
- De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados… Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!
- Eu ia jogar  tudo no lixo, mas  se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente, extra. Telefone, também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa – recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: – Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.
Ficamos  nos  olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada. Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana. prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. C quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.
- Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.
Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até a madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.
- De onde vem esse cheiro? – perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho.
- Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
- É de bolor. A casa inteira cheira assim – ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis  gritar, tem um anão no quarto!, mas acordei  antes. A luz  estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
- Que é que você está fazendo aí? – perguntei.
- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta  debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
- São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida – estranhei.
- Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
- Está debaixo dela – disse minha prima e puxou para fora o caixotinho.
Levantou o plástico.
- Preto de formiga! Me dá o vidro de álcool.
- Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.
- Mas   os  ossos  estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui.
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e, como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E  ficou olhando dentro do caixotinho.
- Esquisito. Muito esquisito. – O quê?
- Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calçei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
- Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda mais de anão.
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa vez foi o antigo pesadelo com os exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha, estudado. As seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campanhia. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei.
- E as formigas?
- Até agora, nenhuma.
- Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando.
- Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?
- Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo… Mas, então, quem?!
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.
- Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.
Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas  seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia Flor de Maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho, que competia nas repetições com o tal sonho da prova oral, nele eu marcava encontro com dois namora dos ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.
- Elas voltaram.
- Quem?
- As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo. A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
- E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
- Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada!
Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta, senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formigas, você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas se trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão… Estão se organizando.
- Como, se organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.
- Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando o seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e… Venha ver!
- Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a
mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro.
- Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia – ela avisou. O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
- Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.
- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, Acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
- Voltaram – ela disse.
Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.
- Estão aí? – Ela falava num tom miúdo, como se uma formiguinha falasse com sua voz.
- Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena movimentação. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava…
- O que foi? Fala depressa, o que foi?
Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.
- Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto já está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
- Você está falando sério?
- Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
- Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
- Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta!
- E para onde a gente vai?
- Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.
 

Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito? 
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra
                                                            

                                           Glossário: 


1. Sótão - Compartimento habitável entre o telhado e o teto de uma casa.
2.Declive - Inclinação para baixo de um terreno ou solo.
3. Assoalho - Cobrir com tábuas ou tacos de madeira
4. Veneziana - Janela de lâminas de madeira ou outro material que, quando fechada, escurece o ambiente, deixando, contudo passar o ar e uma relativa claridade entre as frestas das lâminas.
5. Fresta – Abertura estreita em parede, telhado etc.
6. Desembocavam – Terminar, acabar.
7.Fiapo – Fio muito fino e curto.
8. Cartilagem – Tecido conjuntivo, que reveste a superfície das aticulaçoes e forma as orelhas.
9. Aspecto - Estado ou modo de ser exterior das coisas.
10. Aflição - Sofrimento causado por dor física ou moral, situação penosa etc.

                                                                          Biografia:

A futura escritora, contista e advogada Lygia Fagundes  Telles  nasceu em São Paulo, a 19 de abril de 1923, filha de Durval de Azevedo Fagundes e Maria do Rosário Silva Jardim de Moura. Sua infância foi marcada por um nomadismo incessante, uma vez que seu pai, delegado e promotor, estava sempre peregrinando pelo interior paulista. A menina cresce ouvindo histórias narradas por pajens e outras crianças.
Mais tarde, já sabendo ler e escrever, Lygia passa a criar suas próprias narrativas e, aos oito anos, já anota no caderno os contos que irá transmitir para sua pequena platéia nos círculos caseiros. Seu primeiro contato com a literatura é através das histórias de terror, povoadas de personagens folclóricos, como mulas-sem-cabeça, lobisomens e outros. De retorno à capital, com os pais separados, ela passa a estudar no Instituto de Educação Caetano de Campos, e lá trava conhecimento com o professor Silveira Bueno, que estimula sua vocação literária. Em 1938, a autora lança seu primeiro volume de contos, Porão e Sobrado, com o auxílio do pai, que paga esta edição, na qual ela utiliza o nome Lygia Fagundes.

Ela se gradua na Escola Superior de Educação Física e, depois, na Faculdade de Direito de São Paulo. Nesta academia, ela mergulha no universo da literatura, tornando-se membro do grupo de redatores das revistas Arcádia e XI de Agosto. Neste contexto, ela entra em contato com Mário e Oswald de Andrade, Paulo Emílio Sales Gomes, entre outros intelectuais. Logo depois, em 1944, sai seu segundo livro de contos, Praia Viva, publicado pela Martins, editora paulista. No ano seguinte seu pai morre, o que representa para a escritora uma grande perda.
Lygia só volta a lançar outra obra de contos em 1949, três anos depois de concluir a faculdade de Direito – O Cacto Vermelho, publicado pela Editora Mérito. Desta vez seu livro recebe o Prêmio Afonso Arinos, oferecido pela Academia Brasileira de Letras. Em 1950 ela se casa com seu professor, o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., então deputado federal. Deste matrimônio nasce seu filho, Goffredo da Silva Telles Neto, futuro cineasta. Com o compromisso assumido, ela é obrigada a se mudar para o Rio de Janeiro.
Ao voltar para sua terra natal, a escritora inicia a criação de seu primeiro romance, Ciranda de Pedra, elaborado em grande parte na famosa fazenda Santo Antônio, em Araras, interior de São Paulo, onde se reuniam nos anos 20 os pioneiros do Modernismo. Ele é finalmente publicado pelas Edições O Cruzeiro, editora carioca, em 1954. Ela se separa de seu primeiro marido, em 1960, e logo depois assume o cargo de procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo. Dois anos depois é publicado Verão no Aquário, sua segunda ficção, pela editora Martins.
Ela se casa novamente com o velho amigo, professor e escritor Paulo Emílio Salles Gomes, criador da Cinemateca Brasileira, que a deixa viúva em 1977. Escreve As Meninas, atenta ao contexto político que o país atravessa. Atendendo a um pedido do cineasta Paulo César Sarraceni, ela adapta para as telas do cinema a obra de Machado de Assis, D. Casmurro, em parceria com Paulo Emílio, roteiro batizado como Capitu.
Sua obra é hoje internacionalmente reconhecida, e em sua coleção de prêmios constam alguns de alcance internacional, como o Grande Prêmio Internacional Feminino para Estrangeiros, doado pela França ao seu livro de contos Antes do Baile. A escritora participa também ativamente de congressos, debates, seminários e conferências.

                                                                  Síntese da história:

O conto de Lygia Fagundes  Telles , “As Formigas”, traz a história de duas  primas universitárias que se mudam para uma pensão.
Ao chegarem na pensão as garotas vão se instalar em um quarto e descobrem que um antigo morador deixou lá um caixote com uns  ossos  guardado.
A estudante de medicina se interessa em abrir e ver, principalmente que depois descobre que o esqueleto é um artigo raro que já pertencia a um anão.
Durante a noite, o quarto é tomado por um cheiro de bolor e por uma invasão de formigas que não se sabe de onde vem e que tomam o recipiente onde está, onde estão guardados os ossos, embaixo da cama de garota.
Naquela mesma noite, a garota sonhou com um anão, de olhos azuis, olhando para ela. Quando a outra vai investigar na caixa o que teria atraído as formigas, percebe que a posição dos ossos havia se mexido. Elas matam os insetos e, na manhã seguinte não havia nenhum vestígio de formigas, embora ela não havia limpado o local.
Na madrugada seguinte, depois de um novo pesadelo, a estudante e sua prima descobrem o retorno das formigas e que, mais uma vez a posição do esqueleto foi alterada, parecendo que estava se reconstituindo.
Na terceira noite, elas ficam acordadas esperando para ver de onde vinham as formigas, mas adormecem, e quando acordam ficam apavoradas ao perceber que faltava apenas um osso da perna e outro do braço para que o esqueleto ficasse recomposto.
Com muito medo, as garotas fogem desesperadas da pensão.
É como se duas pessoas entrassem em uma casa antiga, e procurassem o que não deviam e mexesse com o que está na casa. Adolescentes por exemplo, que querem descobrir, se aprofundar no objeto que acharam, e ficar com medo, assustadas com o os acontecimentos entre formigas e ossos de um anão. Na minha opinião, a história é de suspense e terror ao mesmo tempo, ainda mais mexer com ossos de anão que não é sempre que se encontra esse esqueleto. Achei a história bacana e gostei de ter sido desafiada para contar para sala do texto em que eu escolhi. 

Nome: Nathaly Eschifany  Nº: 21

Colégio: E.M.I.E.F Prof. Emilío Simonetti

Profº: Maurílio de Carvalho.