terça-feira, 5 de novembro de 2013

Penélope (Dalton Trevisan)

      Naquela rua mora um casal de velhos. A mulher espera o marido      na varanda, tricoteia em sua cadeira de balanço. Quando ele chega ao portão, ela está de pé, agulhas cruzadas na cestinha. Ele atravessa o pequeno jardim e, no limiar da porta, beija-a de olho fechado.
      Sempre juntos, a lidar no quintal, ele entre as couves, ela no canteiro de malvas. Pela janela da cozinha, os vizinhos podem ver que o marido enxuga a louça. No sábado, saem a passeio, ela, gorda, de olhos azuis e ele, magro, de preto. No verão, a mulher usa um vestido branco, fora de moda; ele ainda de preto. Mistério a sua vida; sabe-se vagamente, anos atrás, um desastre, os filhos mortos. Desertando casa, túmulo, bicho, os velhos mudam-se para Curitiba.
      Só os dois, sem cachorro, gato, passarinhos. Por vezes, na ausência do marido, ela traz um osso ao cão vagabundo que cheira o portão. Engorda uma galinha, logo se enternece, incapaz de mata-la. O homem desmancha o galinheiro e, no lugar, ergue-se caco feroz. Arranca a única roseira no canto do jardim. Nem a uma rosa concede o seu resto de amor.
      Além do sábado, não saem de casa, o velho fumando cachimbo, a velha trançando agulhas. Até o dia em que, abrindo a porta, de volta do passeio, acham a seus pés uma carta. Ninguém lhes escreve, parente ou amigo no mundo. O envelope azul, sem endereço. A mulher propõe queimá-lo, já sofridos demais. Pessoa alguma lhes pode fazer mal, ele responde.
      Não queima a carta, esquecida na mesa. Sentam-se sob o abajur da sala, ela com o tricô, ele com o jornal. A dona baixa a cabeça, morde uma agulha, com a outra conta os pontos e, olhar perdido, reconta a linha. O homem, jornal dobrado no joelho, lê duas vezes cada frase. O cachimbo apaga, não o acende, ouvindo o seco bater das agulhas. Abre enfim a carta. Duas palavras, em letra recortada de jornal. Nada mais, data ou assinatura.   Estende o papel à mulher que, depois de ler, olha-o. Ela se põe de pé, a carta na ponta dos dedos.
   — Que vai fazer?
   — Queimar.
      Não, ele acode.  Enfia o bilhete no envelope, guarda no bolso. Ergue a toalhinha caída no chão e prossegue a leitura do jornal. 
      A dona recolhe a cestinha, o fio e as agulhas.
    —   Não ligue, minha velha. Uma carta jogada em todas as portas.
     O canto das sereias chega ao coração dos velhos? Esquece o papel no bolso, outra semana passa. No sábado, antes de abrir a porta, sabe da carta à espera. A mulher pisa-a, fingindo que não vê. Ele a apanha e mete no bolso.
     Ombros curvados, contando a mesma linha, ela pergunta:
   — Não vai ler?
      Por cima do jornal admira a cabeça querida, sem cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, azuis como no primeiro dia.
   — Já sei o que diz.
   — Por que não queima?
       É um jogo, e exibe a carta: nenhum endereço. Abre-a, duas palavras recortadas. Sopra o envelope, sacode-o sobre o tapete, mais nada. Coleciona-a com a outra e, ao dobrar o jornal, a amiga desmancha um ponto errado na toalhinha.
      Acorda no meio da noite, salta da cama, vai olhar à janela. Afasta a cortina, ali na sombra um vulto de homem. Mão crispada, até o outro ir-se embora.
      Sábado seguinte, durante o passeio, lhe ocorre: só ele recebe a carta?  Pode ser engano, não tem direção. Ao menos citasse nome, data, um lugar. Range a porta, lá está: azul. No bolso com as outras, abre o jornal. Voltando as folhas, surpreende o rosto debruçado sobre as agulhas. Toalhinha difícil, trabalhada havia meses. Recorda a legenda de Penélope, que desfaz a noite, à luz do archote, as linhas acabadas no dia e assim ganha tempo de seus pretendentes. Cala-se no meio da história: ao marido ausente enganou Penélope? Para quem trançava a mortalha? Continuou a lida nas agulhas após o regresso de Ulisses?
      No banheiro fecha a porta, rompe o envelope. Duas palavras... Imagina um plano? Guarda a carta e dentro dela um fio de cabelo. Pendura o paletó no cabide, o papel visível no bolso. A mulher deixa na soleira a garrafa de leite, ele vai-se deitar. Pela manhã examina o envelope: parece intacto, no mesmo lugar. Esquadrinha-o em busca do cabelo branco — não achou.
      Desde a rua vigia os passos da mulher dentro de casa. Ela vai encontra-lo no portão — no olho o reflexo da gravata do outro. Ah, erguer-lhe o cabelo da nuca, se não tem sinais de dente... Na ausência dela, abre o guarda-roupa enterra a cabeça nos vestidos. Atrás da cortina espiona os tipos que cruzam a calçada. Conhece o leiteiro e o padeiro, moços, de sorrisos falsos.
     Reconstitui os gestos da amiga: pós nos móveis, a terra nos vasos de violetas úmida ou seca... Pela toalhinha marca o tempo. Sabe quantas linhas a mulher tricoteia e quando, errando o ponto, deve desmanchá-lo, antes mesmo de contar na ponta da agulha.
     Sem prova contra ela, nunca revelou o fim de Penélope. Enquanto lê, observa o rosto na sombra do abajur. Ao ouvir passos, esgueirando-se na ponta dos pés, espreita à janela: a cortina machucada pela mão raivosa.
     Afinal compra um revólver.
 — Oh, meu Deus... Para quê? — espanta-se a companheira.
     Ele refere o número de ladrões na cidade. Exige conta de antigos presentes. Não fará toalhinhas para o amante vender? No serão, o jornal aberto no joelho, vigia a mulher — o rosto, o vestido — atrás da marca do outro: ela erra o ponto, tem de desmanchar a linha.
     Aguarda-o na varanda. Se não a conhecesse, ele passa diante da casa. Na volta, sente os cheiros no ar, corre o dedo sobre os móveis, apalpa a terra das violetas — sabe onde está a mulher.
     De madrugada acorda, o travesseiro ainda quente da outra cabeça. Sob a porta, uma luz na sala. Faz o seu tricô, sempre a toalhinha. É Penélope a desfazer na noite o trabalho de mais um dia?
      Erguendo os olhos, a mulher dá com o revólver. Batem as agulhas, sem fio. Jamais soube por que a poupou. Assim que se deitam, ele cai em sono profundo.
      Havia um primo no passado... Jura em vão, a amiga: o primo aos onze anos morto de tifo. No serão ele retira as cartas do bolso — são muitas, uma de cada sábado — e lê, entre dentes, uma por uma.
      Por que não em casa no sábado, atrás da cortina, dar de cara com o maldito? Não, sente falta do bilhete. A correspondência entre o primo e ele, o corno manso; um jogo, onde no fim o vencedor. Um dia tudo o outro revelará, forçoso não interrompê-la.
      No portão dá o braço à companheira, não se falam durante o passeio, sem parar diante das vitrinas. De regresso, apanha o envelope e, antes de abri-lo, anda com ele pela casa. Em seguida esconde um cabelo na dobra, deixa-o na mesa.
      Acha sempre o cabelo, nunca mais a mulher decifrou as duas palavras. Ou — ele se pergunta, com nova ruga na testa — descobriu a arte de ler sem desmanchar a teia?
      Uma tarde abre a porta e aspira o ar. Desliza o dedo sobre os móveis: pó. Tateia a terra dos vasos: seca.
      Direto ao quarto de janelas fechadas e acende a luz. A velha ali na cama, revólver na mão, vestido brando ensangüentado. Deixa-a de olho aberto.
      Piedade não sente, foi justo. A polícia o manda em paz, longe de casa à hora do suicídio. Quando sai o enterro, comentam os vizinhos a sua dor profunda, não chora. Segurando a alça do caixão, ajuda a baixá-lo na sepultura; antes de o coveiro acabar de cobri-lo, vai-se embora.
      Entra na sala, vê a toalhinha na mesa — a toalhinha de tricô. Penélope havia concluído a obra, era a própria mortalha que tecia — o marido em casa.
      Acende o abajur de franja verde. Sobre a poltrona, as agulhas cruzadas na cestinha. É sábado, sim. Pessoa alguma lhe pode fazer mal. A mulher pagou pelo crime. Ou — de repente o alarido no peito — acaso inocente? A carta jogada sob outras portas... Por engano na sua.
      Um meio de saber, envelhecerá tranqüilo. A ele destinadas, não virão, com a mulher morta, nunca mais. Aquela foi a última — o outro havia tremido ao encontrar porta e janela abertas. Teria visto o carro funerário no portão.   Acompanhado, ninguém sabe, o enterro. Um dos que o acotovelaram ao ser descido o caixão — uma pocinha d’água no fundo da cova.
      Sai de casa, como todo sábado. O braço dobrado, hábito de dá-lo à amiga em tantos anos.  Diante da vitrina com vestidos, alguns brancos, o peso da mão dela. Sorri desdenhoso da sua vaidade, ainda morta...
     Os dois degraus da varanda — “Fui justo”, repete, “fui justo” —, com mão firme gira a chave.  Abre a porta, pisa na carta e, sentando-se na poltrona, lê o jornal em voz alta para não ouvir os gritos do silêncio.


Glossário:
Vagamente: (vago + -mente)
1. Não ocupado (ex.: lugares vagos). = VACANTE
2. Que não tem quem o ocupe ou desempenhe (ex.: cargo vago). = DISPONÍVEL, VACANTE
Crispar
1. Encrespar, franzir.
2. Contrair.

Regresso 

1. .Ato de regressar. = RETORNO 2. Volta.3. Recurso contra alguém.

Intacto 1. Que não foi tocado.2. Que está qual se recebeu ou foi entregue.3. Inteiro.4. Não encetado.

Espreita

1. .Ato de espreitar.2. Pesquisa; espionagem; atalaia.3. [Antigo]  Cilada; ardil; embuste.

Tifo

 1. Nome de várias doenças contagiosas e .epidêmicas que atacam geralmente grande número de indivíduos ao mesmo tempo, nos sítios onde  demasiada aglomeração de gente.
 Forçoso
1. Indispensável, inevitável; absolutamente preciso.2. Violento, rijo, teso.3. Forte, robusto.

Brando

1. Que cede à pressão.2. Mole.3. Suave, fraco.4. Leve.5. Pouco enérgico.6. Afável, meigo.

Desdenhoso

 1.Cheio de desdém; sobranceiro; esquivo.

Mortalha 1.        Lençol ou túnica que envolve um cadáver.



Texto Síntese:
O conto fala da história de um casal de idosos que viviam sozinhos e isolados. Viviam uma vida bem reservada cheia de mistérios o que se fala no conto é que os filhos morreram num desastre e o casal se mudou para Curitiba.
            Todos os sábados saiam para passear, certo dia chegaram do passeio e encontraram uma carta na porta eles estranham pos ninguém escrevia pra eles. Não leram à carta, mas também não jogaram fora acharam que era um panfleto jogado em todas as casas.
            Na outra semana o senhor encontra outra carta jogada na porta e guarda junto com a outra.
            Já desconfiado ele começa a vigiar sua esposa achando que ela é infiel. Desconfiava de todos até de um primo da mulher que morreu há doze anos.
            Foi então que ele decidiu comprar um revolver ela fica surpresa com a atitude do marido, mas ele diz que é por causa de muitos ladrões.
            Em uma tarde a senhora esta deitada na cama morta com um revolver sob o corpo. Ele diz isso a policia afirmando que ela cometeu suicídio. Mas na verdade ele a matou por ciúmes.
            Mesmo depois da morte da senhora ele continua saindo aos sábados, mas agora sozinho as cartas continuam chegando, e ele c0ontinua achando que foi justo o que ele fez com a  esposa, e lê o jornal em vós alta para não ouvir o silencio.
          Neste conto podemos perceber que o senhor era um homem bravo frio e muito ciumento. E tinha uma grande desconfiança da mulher com quem era casado há muito tempo.
Infelizmente nos dias atuais vemos pessoas assim que por ciúmes cometem esses crimes como, por exemplo, no caso da jovem Eloa que foi mantida em cárcere privado por cinco dias no apartamento onde ela morava, pelo namorado que não aceitava o fim do relacionamento no fim de tudo Eloa acabou morta com um tiro na cabeça e outro na virilha.
As pessoas precisam aprender a ser menos egoístas, mais compreensivas, aprender a controlar o ciúme possessivo e aprender a respeitar os outros seja lá qual for suas decisões.


ilustração:

Nome: Letícia de Souza   N°17
Serie: 9°A
Escola : Emilio Simonetti
Professor: Maurilio
06/11/2013


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