Primeiro
de janeiro, a moça ia passando pela Avenida Atlântica, feliz de estar de
vestido novo, sapato novo, namorado novo (ele ausente, mas era como se
caminhassem de mãozinha dada), tudo novo, alma inclusive. Do mar vinha uma
brisa que não dava para desmanchar cabelo, eram mansos recados de viagem,
outras terras convidando. Não, vou ficar por aqui mesmo, vou andar toda a vida
nesta calçada, pensando nele, sentindo ele, estou tão bonita neste vestido, a
moça sabia que estava....
De repente, zapt, a cusparada veio lá do alto do edifício e varreu-lhe o braço direito que nem onda de ressaca. Horror, nojo, revolta: no meio das três sensações, o triste consolo de não ter sido no rosto, nem mesmo no vestido. Como limpar – "aquilo” sem sujar mais? Teve ímpeto de atravessar a rua, a praia, meter-se de ponta-cabeça no mar. Depois veio a idéia de entrar no primeiro edifício, apertar a primeira campainha, rogar em pranto à dona da casa: “Me salve desta imundície!”. Sentia-se tão desmoralizada, que não teve coragem de enfrentar essa suposta dona de casa, talvez estivesse em casa, podia não ser uma dona, podia ser quem?
Felizmente ali estava sentado num banquinho, de transistor ao ouvido, gozando a fresca, o velho porteiro. Dirigiu-se a ele como a um deus encarnado:
- Moço, será que o senhor tem aí nos fundos uma torneirinha dessas de tirar areia dos pés quando a gente volta da praia? Estou muito precisada!
O velhinho olhou-a com olhos neutros, sem afastar o rádio do ouvido, nenhuma expressão na cara. Evidentemente não queria tomar conhecimento do assunto. Tão bem calçada, que história de areia é essa?
Ela procurava esconder a pele conspurcada, mas afinal a exibiu para comover aquele gélido coração:
- Me leva à torneirinha, moço! Olhe só a porcaria!
Ele não queria perder o sossego do domingo, ou desconfiava de um golpe da desconhecida? O certo é que a fisionomia não acusou qualquer reação, até que os lábios começaram a remexer, devagar, a boca mastigando um pensamento.
- Torneirinha eu tenho, mas não serve para a senhora.
- Serve sim, uma garrafa de água serve!
- Vai ensopar seu vestido, não está direito.
- Faz mal não, que me importa o vestido, eu quero é limpar!
Ele sacudia a cabeça inexorável. Até que se levantou, com um gesto: “Venha cá”, e foi levando a moça pelos meandros escuros da garagem. Apontou-lhe a pia, conforto muito maior que a torneirinha de emergência:
- A senhora espere aí.
E saiu, deixando o radiozinho à beira da pia. A moça não pôde deixar de pensar: “Fiz mau juízo dele pensando que ele fazia mau juízo de mim. Sem me conhecer, deixou o transistor ao alcance de minha mão. A coisa mais preciosa que tem, com certeza! Se eu fosse um vigarista ...”. O homem custava. Apareceu, afinal, com uma toalha limpa e um sabonete embrulhado, recomendando-me que esfregasse bem, não tinha pressa.
Nunca a água lhe pareceu tão boa, sabonete nenhum tão fino, a pia era um sonho. Sorriu para o velho, limpa de toda a mácula.
- O senhor praticou a sua primeira ação boa do ano sabe?
Ele sorriu também, recompensado. Ora, ora, uma nojeira dessas, quem que pode?
- Atirada talvez deste mesmo edifício...
- É capaz. A gente vê de tudo.
Gratificá-lo com dinheiro seria tão indecente quanto cuspir da janela – pensou a moça. Tirou da bolsa um maço de cigarros, pediu-lhe que aceitasse.
Não queria; para não fazer desfeita, aceitou.
- Se precisar de mim outra vez, estou às ordens.
- O quê? O senhor acha que eu vou ser cuspida outra vez, moço?
- Não é isso não, não é isso, mas a gente nunca sabe o que pode acontecer a uma senhorita!
De repente, zapt, a cusparada veio lá do alto do edifício e varreu-lhe o braço direito que nem onda de ressaca. Horror, nojo, revolta: no meio das três sensações, o triste consolo de não ter sido no rosto, nem mesmo no vestido. Como limpar – "aquilo” sem sujar mais? Teve ímpeto de atravessar a rua, a praia, meter-se de ponta-cabeça no mar. Depois veio a idéia de entrar no primeiro edifício, apertar a primeira campainha, rogar em pranto à dona da casa: “Me salve desta imundície!”. Sentia-se tão desmoralizada, que não teve coragem de enfrentar essa suposta dona de casa, talvez estivesse em casa, podia não ser uma dona, podia ser quem?
Felizmente ali estava sentado num banquinho, de transistor ao ouvido, gozando a fresca, o velho porteiro. Dirigiu-se a ele como a um deus encarnado:
- Moço, será que o senhor tem aí nos fundos uma torneirinha dessas de tirar areia dos pés quando a gente volta da praia? Estou muito precisada!
O velhinho olhou-a com olhos neutros, sem afastar o rádio do ouvido, nenhuma expressão na cara. Evidentemente não queria tomar conhecimento do assunto. Tão bem calçada, que história de areia é essa?
Ela procurava esconder a pele conspurcada, mas afinal a exibiu para comover aquele gélido coração:
- Me leva à torneirinha, moço! Olhe só a porcaria!
Ele não queria perder o sossego do domingo, ou desconfiava de um golpe da desconhecida? O certo é que a fisionomia não acusou qualquer reação, até que os lábios começaram a remexer, devagar, a boca mastigando um pensamento.
- Torneirinha eu tenho, mas não serve para a senhora.
- Serve sim, uma garrafa de água serve!
- Vai ensopar seu vestido, não está direito.
- Faz mal não, que me importa o vestido, eu quero é limpar!
Ele sacudia a cabeça inexorável. Até que se levantou, com um gesto: “Venha cá”, e foi levando a moça pelos meandros escuros da garagem. Apontou-lhe a pia, conforto muito maior que a torneirinha de emergência:
- A senhora espere aí.
E saiu, deixando o radiozinho à beira da pia. A moça não pôde deixar de pensar: “Fiz mau juízo dele pensando que ele fazia mau juízo de mim. Sem me conhecer, deixou o transistor ao alcance de minha mão. A coisa mais preciosa que tem, com certeza! Se eu fosse um vigarista ...”. O homem custava. Apareceu, afinal, com uma toalha limpa e um sabonete embrulhado, recomendando-me que esfregasse bem, não tinha pressa.
Nunca a água lhe pareceu tão boa, sabonete nenhum tão fino, a pia era um sonho. Sorriu para o velho, limpa de toda a mácula.
- O senhor praticou a sua primeira ação boa do ano sabe?
Ele sorriu também, recompensado. Ora, ora, uma nojeira dessas, quem que pode?
- Atirada talvez deste mesmo edifício...
- É capaz. A gente vê de tudo.
Gratificá-lo com dinheiro seria tão indecente quanto cuspir da janela – pensou a moça. Tirou da bolsa um maço de cigarros, pediu-lhe que aceitasse.
Não queria; para não fazer desfeita, aceitou.
- Se precisar de mim outra vez, estou às ordens.
- O quê? O senhor acha que eu vou ser cuspida outra vez, moço?
- Não é isso não, não é isso, mas a gente nunca sabe o que pode acontecer a uma senhorita!
Fonte: Livro Deixa que eu conto
Glossário:
brisa
s. f.
1. Vento fresco e brando.
2. Vento brando à beira-mar.
3. Aragem.
4. Bole-bole.
ímpeto
s. m.
1. Movimento impulsivo, violento e repentino.
2. Arrebatamento.
3. Abalo; agitação; precipitação.
rogar -
v. tr.
1. Pedir por favor.
2. Pedir com instância, suplicar.
v. intr.
3. Fazer súplicas.
encarnado
adj.
1. De cor de carne.
2. Vermelho como carne viva.
s. m.
4. Encarnação (de esculturas).
gélido
adj.
1. Muito frio.
2. Congelado.
3. Que faz congelar o sangue.
4. [Figurado] Paralisado, imóvel,
suspenso.
5. Insensível.
ensopar
v. tr.
1. Pôr (o pão) a abeberar.
3. Encharcar.
4. Guisar.
5. [Figurado] Falar como entendido
de.
v. pron.
6. Embeber-se, impregnar-se; ficar encharcado.
7. [Brasil] Tomar intimidade (com
alguém).
inexorável
(latim inexorabilis, -e)
(latim inexorabilis, -e)
adj. 2 g .
1. Que não cede a rogos nem a lágrimas; que não
tem piedade. = CRUEL,
IMPIEDOSO, IMPLACÁVEL, INSENSÍVEL ≠ COMPASSIVO,
EXORÁVEL, PIEDOSO
2. Muito rigoroso. = DURO, IMPLACÁVEL ≠ EXORÁVEL
meandro
s. m.
1. Sinuosidade; volta.
2. [Figurado] Enredo, intriga.
conspurcar -
v. tr.
1. Cobrir de imundície nojenta.
2. [Figurado] Ultrajar com insulto
aviltante.
3. Corromper.
4. Depravar, macular.
cusparada
s. f.
Grande
porção de cuspo.
Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
Carlos
Drummond de Andrade foi poeta brasileiro. Nasceu em Itabira de Mato Dentro,
interior de Minas Gerais. Filho de Carlos de Paula Andrade e Julieta Augusta
Drummond de Andrade, proprietários rurais decadentes. Em 1925, casou-se com Dolores Dutra de Morais, com quem teve dois filhos Drummond foi funcionário público, embora tenha
começado a escrever cedo e prosseguindo até seu falecimento, que se deu em 1987 no Rio de Janeiro, doze dias após a morte de sua filha. ] Além
de poesia, produziu livros infantis,contos e crônicas. Foi um dos maiores poetas brasileiros do século XX
Síntese
do grupo
O texto fala sobre uma moça que
estava feliz e muito arrumada ela se sentia renovada, mas enquanto andava
cuspiram nela de um edifício.
Ela ficou com nojo revoltada e
muito nervosa, pensou em pedir ajuda em uma casa, mas ficou com vergonha até
que encontrou um senhor e pediu ajuda a ele.
O senhor a principio o senhor não
demonstrou nenhuma reação, pois não queria perder seu sossego ou não queria da
confiança a uma desconhecia.
Mas depois o senhor a ajudou levando-a uma
torneira de uma garagem para ela se lavar. E ela para agradecer lhe deu um maço
de cigarros.
Nós achamos
que foi errado cuspir nela, pois é uma falta de educação e de respeito ao
próximo e ela não deveria ter vergonha de pedir ajuda, pois não fez nada de
errado e o e o senhor fez bem de ter ajudado ela. E ela não deveria retribuir o
senhor com maço de cigarros e sim agradece-lo de outra forma.
Professor Emilio Simonetti 9°A
Letícia
Pámela
Laura
Tais
Igor
Julho
Muito legal o texto e o trabalho ficou bom (:
ResponderExcluirOk. Mas é importante q todos façam comentários mais significativos sobre o texto, conforme foi explicado (o q gostaram, o entedram, o ñ gostaram ...)
ExcluirO Trabalho ficou muito bom... parabens :D
ResponderExcluirO trabalho ficou muito legal
ResponderExcluirO trabalho ficou legal!
ResponderExcluirGostei.
ResponderExcluirBom empenho.
Boa apresentação na sala.
Continuem
Bacana o trabalho de vocês!!
ResponderExcluirEsse texto de Drummond me faz perguntar: como é possível alguém ter o "espírito de porco" de cuspir de um prédio para acertar um transeunte?Incrível como ainda existem pessoas pobres de espírito!!!
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